13/11/2008

AnA

The Sleeper - Tamara de Lempicka


Ana recolhia os cacos que emergiram sobre a água da chuva. Eufemismo, chuva, a verdade é que um temporal turbinado á granizo havia estraçalhado a vidraça da sala. Conduzidas por um vendaval apocalíptico as pedras chocaram-se contra os vidros como se os quisessem arrancar para sempre. Uma sala de estar, bonita, aconchegante, cuidadosamente decorada para ser receptiva e calorosa com as visitas agora assim, descoberta, desprotegida á sorte de ladrões e outros seres soturnos presentes nos grandes centros urbanos. Por entre a lama, galhos de plantas, lixos de diversos tipos, os cacos viajavam ludicamente como se parecessem querer chegar a algum lugar. Ana os olhava absorta, seu pensamento mergulhado na introspecção da dor impedia-a mesmo de espantar-se com o barulho do impacto ou a periculosidade das pontas afiadas, contra as quais projetava seus dedos num movimento quase mecânico, recolhendo-os um, a um sem que isso tivesse sentido. Não, não havia sentido algum, nisso ou em qualquer coisa que Ana fizesse desde que ele partiu. E partir é sempre mais do que ir embora, é levar consigo sonhos, gestos e fatos, risos e lágrimas, dores e cores, é tirar das coisas o aroma que tinham quando ainda estavam juntos.
Ana se lembrava de tudo, o jeito como ele dava o nó nas gravatas, a forma delicada de dobrar as cuecas sobre o colchão da cama, a rapidez com que colocava as coisas no cabide, os desastres com o ferro sobre as golas das camisas, sempre fazendo um vinco a mais... sabia do cheiro que tinha na boca quando ele acorda e ainda é cedo demais pra levantar, e levantar sempre no susto porque havia perdido a hora. Ele conhecia o jeito dela, entedia os chiliques na hora de sair, sabia do modo como ela gostava do sanduíche, conhecia o perfume das roupas dela, elogiava os sapatos, das cores mais diversificadas que sempre cautelosamente completavam os figurinos. Os cacos desajeitadamente colhidos vez ou outra lhe cortavam os dedos, o sangue logo diluído naquele mar de escombros ela parecia nem notar. Há dias e dores que o corpo não processa, é como se a própria situação tratasse de nos entorpecer, ainda que contra a nossa vontade, como se o tempo nos preservasse de viver tudo de uma única vez, como se fosse homeopaticamente injetando-a no nosso cotidiano, em tudo, nas pequenas coisas. A pá de lixo abarcava os cacos, conduzindo-os ao cesto onde Ana nem se quer teve o trabalho de verificar, e não era desleixo, talvez falta de auto-estima nesta hora, mas ela se esquecera de tomar cuidado com os lixeiros. Ela que sempre se preocupava com tanta gente, neste dia fora incapaz de poupá-los de um acidente, ela que tão acidentada, sentira exatamente como se tivesse abraçado o lixo, um enorme saco de lixo cheio de lodo e objetos cortantes. Passadas algumas horas do fim do temporal ainda podia sentir o cheiro úmido na casa e disso Ana gostava, desde pequena apreciava a dança das gotas sobre a vidraça, gostava do barulho da água caindo e de tomar chá quente no sofá. Ainda restava o sofá, o mesmo que fora palco de tantas recordações agora era para ela apenas isso, um bom lugar para se tomar um chá, café ou uma generosa dose de vodka após a cartela de anti-depressivos. Bobagem, ela sabia que não faria isso, sabia que embora tudo fosse apenas um amontoado de lama e cacos de vidro a casa estaria limpa na semana seguinte. Tinha escondido as fotografias e pensado que era melhor pintar as paredes da sala. Fechou as cortinas para se proteger do vento e saiu para certificar-se de que os portões estavam devidamente fechados. Ao retornar apagou as luzes silenciosamente e dirigiu-se para o quarto de hóspedes, onde pode finalmente dormir em paz dois comprimidos inteiros depois e um copo com água pela metade.

07/10/2008

Entreatos...

Eros e Psique - François Gérard


A pele traduz a legenda do que não diremos jamais...
Me sinto mal acostumada, traduzir sentimentos em ações, requer dicionário de alma desses profundos e auto-descritivos, teimosos, do tipo que constroem sua própria semântica afim de corrigir os desacertos da mudez. A energia gasta para manter-se de pé vem da crença na própria natureza, se planta, se rega, se nutre e paciente como quem observa as estações do ano e respeita a cronologia do ciclo da vida, torna-se contemplativo e sábio a esperar o dia da colheita. Quando o corpo, por qualquer desacerto sai de cena para cuidar de si a mente desconfia da sua eficácia, o coração sorrateiro parece que nunca entende nada direito, brinca como criança no jardim das memórias que ousara sonhar, projetando-se numa falsa redoma magnética capaz de protegê-lo de todo o mal. Pobre coração... alimenta-se de ilusões hiper calóricas, cresce em progressão aritmética, mas torna-se fraco, frágil e bobo, feito criança no final da fila. Não sabe de si, não sabe do mundo, sofre quietinho sem fazer barulho, não quer incomodar, mas não aprendeu a existir sem doer. O cérebro, mais poderoso, ajeita tudo, põe as coisas no lugar e organiza o dia seguinte, a semana seguinte, o mês seguinte... Suas tabelas, gráficos e projeções são otimistas apesar das oscilações. Viver segue as tendências do mercado, o mundo nos afeta mais do que supomos. Aceito o mundo, mesmo não aceitando nada do que tenhamos feito com ele, não brigo com a vida, brigo com vida, pelo direito de torná-la muito mais do que uma “sobre vida”. Luto pelas coisas que acredito, utopicamente, mas não incessantemente. O excesso de humanidade me cansa, mas a incapacidade de ser diferente me mantém de pé.

01/10/2008

Pérolas aos porcos...

(Imagem extraída da internet...)


"Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem."
(MATEUS 7:6)

O que posso eu dizer da tua mediocridade? Que aquilo que mostras ao mundo influencia na forma como te vejo, expondo a tua carne pra omitir aquilo que falta à tua essência...
É na tua promiscuidade que enxergo a insegurança e a repugnância de seres iguais a ti, que tentam sustentar nos fracos ilusões, afim de alimentar um ego vulnerável e carente de auto-estima. Certamente que não haveria de ser sem fundamento, que algumas pessoas embora destituídas de nobreza e de humanidade fossem minimamente dotadas de auto-conceito, suficientemente para saberem o quanto são desinteressantes e pobres de repertório. Disso decorre o fato de não serem nada além da grande massa, que ignorante, na pureza semântica da expressão, encontra-se representada na baixa literatura, em livros de auto-ajuda, ruídos aos que chamam de musica, filmes hollywoodianos... Sim, é permitido que o populacho construa ícones de papel, cujos valores se deturpem com o vento e virem fumaça com uma só faísca. Entretanto, é necessário que assumamos a nossa postura diante do mundo, cada um na busca pelos seus iguais. Não é vedado a ninguém o direito de apegar-se a tipos assim, de verem no excremento sua imagem refletida, apenas compreendam o sentido disso e assumam seus verdadeiros postos. Uma vez compreendidos como “gente qualquer” desfaçam-se das máscaras que os colocam como seres especiais dotados de qualquer habilidade que mereça relevância. Assumam seus verdadeiros postos, busquem cada um a própria verdade, olhem destemidamente para o dentro de si e compreendam de que lado da roda vocês estão. Caso o contrário, joguem fora o lixo interior para que a verdadeira transcendência possa atravessar a áurea de vocês, quem convive ratos de fato não merece nada além do esgoto.
Tatiana Araújo
* Uma noite triste, um conflito brusco...e uma homenagem. Àqueles que a mereçam, sejam eles qualquer um ou apenas gente do passado.

16/09/2008

"O mundo começa agora... Apenas começamos"

Salvador Dali - Metamorfose de Narciso

...então eu lhe acariciei em silêncio e vi seu corpo estremecer. Ele me disse que viu a própria alma ausentar-se do corpo para dizer-lhe coisas estranhas. Estranheza para a mente dele é saber que meu calor vem recheado de frases que engulo a seco, permeadas de assombro do silêncio dele. Tem no meu olhar a ternura de quem vê um homem desnudo e vulnerável, na mais desprotegida das formas entre meus braços de amante e meus seios de mulher de alma. Tudo o que eu faço tem a ressonância dos versos dele, minha canção é a musica da alma dele, meu gesto tem o traço dos encantos dele, meu vazio tem o som da fala dele. Era tremor, susto, espasmo... eclodindo numa energia demasiada forte para que um de nós estivesse ali. Tudo me parecia exacerbadamente verossímil , ele hesitando em dizer que não me contaria, eu astuciosa na curiosidade feminina implorando para que as palavras elucidassem algo... Mas ao ouvir o esperado desfecho um ceticismo mórbido ocorreu-me instantaneamente, a descrença numa desgraça ainda maior na própria vida, além do desamor já não me abala mais. É isto que justifica todas as catástrofes, o mundo contemporâneo se perdeu em seu próprio vazio e já não somos mais capazes de humanizar uns aos outros. Se há alguém acima de nós está se divertindo muito com as nossas pequenas desgraças para querer findá-las numa ação apocalíptica. Ainda não concluí metade dos meus propósitos, ainda não perdi um ente muito querido, ainda não quebrei uma parte do corpo, ainda não usei as drogas que queria , ainda não vivemos a completude do amor ... e é por isso que eu digo a ele: eu acredito em tudo o que me disse, mas não, o mundo não há de se acabar...

02/09/2008

Cuidado: Piso molhado.

Parece que tem sempre um sinal alertando agente para não cair, tem sempre uma placa, um tapete, um triângulo, alguma coisa. Estamos simplesmente tentando seguir adiante, parece tão simples, mas temos obrigatoriamente que atravessar pro outro lado. Estamos tentando, e me questiono se é mesmo isso, se diante da placa os nossos olhos são capazes de mirar o chão afim de verificar a veracidade da mesma ou o esquecimento de algum funcionário. Me questiono quantas vezes desviamos do caminho simplesmente porque havia uma placa, embora as peripécias dos trópicos nos concedessem pisos secos em poucos minutos e nos garantissem trânsito seguro rumo ao nosso destino final. Porque é necessário vislumbrar além, é necessária a visão panorâmica, posto que somos tão racionais. É necessário assumir os riscos das nossas escolhas, ainda que cair signifique aprender a levantar. Sem os riscos perdemos tempo em vão, talvez alcancemos o mesmo destino, mas a obviedade do conforto pode nos privar da aventura da transgressão. É necessário transgredir, descumprir normas, protocolos, ignorar as placas afim de ver o que acontece. É dessa sensação que se nutriram os gênios, da não observância do ponto em foco no todo. É necessário ousar, afinal o que seria de nós sem as chineladas pelos banhos de chuva? E também das fábricas de aspirina... O que seriam das nossas lembranças sem um porre na adolescência ? E dos ombros sinceros dos melhores amigos...O que seriam dos bons amantes sem um carinho inesperado na via pública? E do silêncio na vizinhança... É necessário cair, estar vivo é sentir dor e se não tem gelol que cure agente corre pro analista, mas sem a queixa de ter estado atônito, débil e mediocremente parado diante da placa.

05/08/2008

Geração Nissin Miojo...

Andy Warhol - Tomato Soup

Hoje os dias são repletos de "mimesis", tudo é imitação. Ás vezes o falso que cabe no bolso é preferível ao que vem com nota fiscal, se der errado não reclame, mas se funcionar vem aquela sensação de esperteza. Tudo é uma questão de saciar a fome do momento, aliviá-la sem nutrir-se ainda que o corpo esteja fraco. Há sempre um tempero pronto, que não deixa cheiro nas mãos embora satisfaça mediocremente o paladar. Nossos sentimentos podem ser achados em prateleiras de supermercado, também estão em pacotes lindos que ficam prontos em poucos minutos e tudo o que precisamos é de um balde de água fervendo. Assim prosseguimos enganando o espírito, mais que ao estômago e ao coração. Vivemos ilusões passageiras sem pretensões de alimentar a alma. Nos dias frios tem chá quente e cobertor, nos dias quentes roupa curta e carinho na mão. Tudo de segunda linha, chá, cobertor, vestimenta, carinho... Originalidade custa caro e demora muito pra pagar, ainda que se tenha condições. Alimentamo-nos de ilusões, mostramos nosso sorriso amarelo, partilhamos o endereço na net e vamos seguindo, uma vida cremosa, tradicional ou light. O que não nos faltam são novas versões sempre dentro da velha embalagem.

A Casa

Mark Ryden - The Ecstacy of Cecelia

Sempre vejo o ser humano como uma casa;
alguns são proprietários, outros apenas inquilinos...
Existem casas que são grandes e espaçosas, mas não são aconchegantes,
há outras que são muito pequenas, mas tudo tem o seu canto e no final vive-se feliz.
A minha casa é média, nem tão alta como uma mansão, nem tão espaçosa, nem tão apertada... Como na maioria das casas tem o “cantinho da bagunça” que estou sempre tentando arrumar.
Depressão é quando a bagunça toma conta da casa inteira, quando não sei onde acaba o mundo que me sufoca e começa aquilo que realmente sou.
Alegria é quando está tudo em ordem, mesmo tendo alguma baguncinha e então pode-se abrir a porta para que alguém venha e habite comigo, transformando a casa num lar.
Felicidade é quando eu percebo que mesmo com todas as tempestades os alicerces continuam em pé.